15 de dezembro de 2009

Maurício

_ Maurício? _ O estranhamento quase me estagnou _ que bom que você voltou, o cachorro devia mesmo estar sentindo a minha falta.

Quando Maurício me disse decidido que precisava de novos ares, assim como quem resolve ir  à padaria num final de tarde de feriado mesmo sabendo que as padarias não abrem aos feriados; e veio me perguntar, como se houvesse alguma possibilidade de eu dizer não, se poderia levar o cachorro consigo nessa empreitada de ser um homem sozinho porque tem vontade, que mora com um cachorro chamado cachorro...

Quando Maurício veio me dizer que estava mudando-se de nós dois e que ainda levaria cachorro, a parcela terceira de nós três...

Quando Maurício foi embora... Quando ele se foi, eu me vi num eco, sem latidos, sem blues, sem Maurício...

Quando Maurício foi embora, eu me vi ali, sem nós dois, numa dor que eu diria insuportável, se eu não tivesse suportado; assassina, se eu não tivesse sobrevivido; incomensurável, se eu não tivesse comprado uma fita métrica e uma garrafa de vinho tinto seco.

Quando foi-se, ali ficamos eu e o eco que, antes, não havia; durante, só havia quando feriado-padaria e depois, quando era tudo o que havia. O eco.


Quando Maurício foi embora, lá fora no quintal da casa abriu-se a cratera. O buraco! Tipo o da Rua do Senado. Aquele cheio de caminhos e veias de sangue onde escorrem lágrimas da Gaia machucada. Quando eu saia pro quintal éramos só nós dois no planeta: eu e o buraco . Eu pequenininha, porque o planeta é grande demais, quase do tamanho do buraco.

_ Maurício? O estranhamento quase me estagnou.

Mentira. Não estranhei. Quando Maurício foi embora, não logo, mas depois de um tempo, eu me questionei se ele não deveria ter ido antes. Não pensei isso dando de ombros e despeito ou coisa assim, mas por me dar conta de.

Quando ele foi embora eu me dei conta de que havia mesmo uma ausência dele, uma vontade de não estar ali que nem eu nem cachorro podíamos fingir que não existia, principalmente nos dias de padaria.

Quando Maurício se foi; apesar daquela dor de 'atropelamento quando não aparece ninguém para te salvar porque não há mais ninguém no planeta Terra inteiro somente o eco, ele que dirigia a carreta responsável pelo acidente, ele que não sabe nada de salvamento e mesmo assim não fugiu e ainda está aqui, o eco'; apesar da dor de atropelamento, eu sorri.

Quando Maurício se foi, eu chorei... e sorri. Chorei por ter acreditado, por ter planejado, por ter... em vão. E sorri porque fingir que não sabia daquela ausência-que-existia pesava demais no coração.

_ Maurício? Que bom que você voltou! mas não dá mais pra ficar, não há mais lugar, o cachorro cresceu, não dá mais pra encarar.

Quando Maurício se foi, cachorro já era grande, fato que deixou o espaço ainda maior, mais vazio. Eu sabia que aquele cachorro cresceria mais que aquilo e consequentemente babaria mais e teria o dobro de pêlos. O que acontecia comigo? Eu não gostava de cachorros grandes-peludos-desengonçados-babões. Aliás, baba de cachorro era uma coisa que me fazia quase não gostar de cachorro. O que que acontecia comigo na época? Que tipo de sentimento te faz deixar de ser quem é? Que tipo de relação te faz engolir um cachorro grande e a baba dele tudo-junto?

_ Maurício? Que bom! Cachorro devia  mesmo estar sentindo minha falta, mas não dá mais, eu não gosto de cachorro.

Que baque! Quando Maurício voltou, teve um baque. Eu já não era mais a mesma e a casa já não tinha o mesmo cheiro. As plantas daquele tempo haviam morrido e as novas, florescido.


Quando Maurício voltou, a tv estava ligada e o nome da novela, O retorno. Preferi desligar. Pelo controle-remoto mesmo. Podia ter desligado diretamente na televisão, mas desliguei pelo controle, o que foi meu erro, porque uma luzinha vermelha se fez ligada até que eu olhasse pra ela e pensasse 'que bom que a gente erra'.


Quando Maurício voltou... Ah Maurício quanta tampa faltou pra pouca panela... como você demorou, o tutu acabou e no tacho, só resta o azedume do feijão passado, daqueles que nem se retemperam. Quanta pena...




Quando Maurício voltou, o som estava ligado em Raul, que me dizia 'tente outra vez'. Nem desliguei... tive medo de uma voz gritar 'toca Raul' ou quem sabe 'liga a novela'. Essas coisas de tecnologia e sobrenatural me fazem receiosa.


Quando Mauríco voltou, fiquei pensando, bem ali na situação, naquele aborto. Tinhamos abortado, além de nós mesmos, um bebezinho. Ele era tão... tão... tão bebê. Tão não-nascido ele era. Entrara em mim com vida e saíra com morte. Entrara com futuro e saíra com passado. Entrara com gozo e saíra com sangue.
Tempo, quanto tempo fazia isso... Meses? Décadas? Acho que uma eternidade. E ainda sentíamos o gosto de ferrugem nas bocas, as mesmas que falaram e pontuaram finalmente, entre um beijo ou outro, sobre o aborto do bebê, que morrera sem nascer. Tão pequenino era ainda... hoje um monstro feio e abortado. Feto não-desenvolvido, meu pesadelo...


Quando Maurício voltou, falamos alguma coisa sobre o buraco que capitalistas cavam no útero e no planeta, bem alí perto, na Rua do Senado, em busca de um baú cheinho de dólares verdes e amarelos que brilham no escuro. Falamos ainda do escuro, que nada mais é do que a ausência de luz e mais nada além do silêncio foi dito naquele dia, o dia em que Maurício voltou.



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