21 de julho de 2009

RODRIGO


_ Ele morreu.
A mulher sentiu uma espécie de ventania na barriga, dessas que derrubam as árvores mais vulneráveis, as mais fininhas, de cascas grossas-mentirinha.
_ É você mesmo?
_ Inacreditável! Quanto tempo faz...
_Tantos acontecimentos desde aquela infância de triângulo que era só nossa.
_É verdade. E ele, como está?
_ Ele morreu.
Trovoadas. A mulher-eu molhava-se em chuva de virar sombrinhas de bolinhas vermelhas ao contrário-parabólica. Infâncias, imagens, mamãe se afastando dos adultos pela fumaça-preconceito que subia, indo ficar com as crianças-descobertas-beijo na boca-doce-de-suspiro.
_E ele, como está?
_Ele morreu.
_Como pode?
Dor de vento arrancando desde as raízes até as folhas, amoras caindo fora de época. Cabeça girando ao avesso-indefinição. Dúvida se tinha sido amor. Perda da esperança de encontrá-lo ainda e dizer que tinha sido bom aquele carinho-cabelos e corpo na luz escura deitados à cama do lado-testemunha da vovó, que deixava porque tudo deixava, que dormia.
_Foi um acidente. Ele estava ainda com dezoito, quando os tios resolveram separar suas vidas-traídas, e de quebra descobriu, não-sei-como, sobre a adoção.
A chuva interna se agitava-convulsão. Sua morenice, pra mim morenice-de- encanto, era o que mais o incomodava-suspeita. Quanta mentira desnecessária!
_Quanta mentira desnecessária...
_Era o que eu pensava, sempre desde criança, quando nem logicamente pensava, já achava, sem comentar porque não sabia como começar.
_Era também o que eu pensava.
_Você sabia?
_ ...
_Eu sei, todos sabiam.

_Ele não sabia.
A chuva trazia a lembrança de papai nos contando e pedindo maior-segredo-do-mundo. Estória curiosa, família-mistério, triângulos traídos em quartetos, filhos adotivos-segredo, mentiras das cinematográficas, tema pronto-desfeito-de-medo pra menina que começava escrever metáforas na escola e fora dela. Brigas, afastamento. Como ele havia crescido? Que outros mistérios reservava por detrás da cicatriz que ia do peito até a barriga? Sim, tinha sido amor, agora ela, a mulher que sou, sabia, tinha certeza da dúvida.
_Aos dezoito sacou uma arma-automóvel e se atirou na primeira curva que encontrou. Tiro certo, morte errada.
_Lastimável!
_O primo era meu, e você surgiu mais linda, magra, mais apropriada do nome que era nosso, o mesmo.
-Éramos criança, eu não sabia dos seus sentimentos, nem dos dele.
Mentira. Quantas cartas de amor os tios quiseram me mostrar. Revelações-brincadeiras entre as cervejas geladas nos fins-de-semana. Nunca as li. Quanto amor-dos-inocentes-infantis deixei de dar. Rodrigo se calava, não gostava, eu gostava-não-gostando, ele calava e mergulhava na piscina e, na sua morenice, ia e vinha de canto ao outro no azul dos azulejos por debaixo d'água. Ele só emergia quando o assunto encerrava, eu... esperava. Como é que Machado, tempos depois descobri, conseguiu predestinar nossas traças?
_Nossa, quanta saudade me bateu agora...
_Quanta saudade!
_Preciso ir.
A mulher queria chover sozinha, no escuro.
_Preciso também.
_Desculpa, e você como está?
_Bem, casada, eu e as dietas. Agora sem ajuda da mamãe. Você, linda.
_Isso você criou.
_Ele criou.
_E você tomou pra si.
_Tudo dele eu tomava pra mim, as cartas, todas elas pra você, ele me mostrou. Eu as tomei pra mim. Se quiser, ainda as tenho.
_Que nada! Coisa de criança...
A mulher queria sim, mas não podia. As releituras doem mesmo que nunca tenham sido lidas.
_Abraço nos tios
_Outro, dos grandes.
Saíra dali, eu-a-mulher, chovendo-se inteira-metade e pensando em como o filme de ontem a fizera lembrar e sonhar, acordando cheia de mistérios no olhar e como, no caminho cotidiano, encontrara aquela de mesmo nome que o seu, que já não mais menina era, pra contar-lhe o ocorrido com Rodrigo, dono dos seus sonhos de criança, dono do seu sonho de ontem a noite pós filme. Noite. Sempre a noite. Lembranças. Mamãe e papai queriam sair-sozinhos-luz-do-luar com os pais do Rodrigo, ficamos com a vovó dele. E já tudo planejado nos deitamos lado a lado. Brincadeira de criança. Carícias que jamais me largaram a memória. Segredo dos urgentes, medo de alguém descobrir que havíamos perdido a virgindade do coração.
_Eu sei que você gosta de mim._ Rodrigo disse-me um dia na hora do recreio. Eu mesma não sabia. Acabava de descobrir, a mulher que chovia na chuva, que sim gostara de Rodrigo com o maior e mais inocente dos amores. O que ele havia se tornado naqueles oito anos que ainda viveu e nunca nos vemos? Desentendimento dos nossos pais. Afastamento físico, não de sentimentos. Afastamento cruel, dos que não se explicam. Saudade não declarada, nem questionada, nada, para agora, em meio ao cotidiano, encontrar um alguém de mesmo nome que andava por esse tempo no clube dos escoteiros, para avisar-lhe sobre a morte.
A mulher abriu um guarda-chuva que me fizesse sombrinha. Eu abri um guarda-chuva que cobrisse a mulher. Proteção. Só ela, sozinha e a sombrinha. Ninguém mais, no meio urbano do qual queria fugir-mas-paralizava, abrira um guarda-chuva. Ninguém. Será que não chovia? Pensou em esticar um dos braços para testar, mas desistiu.
_ Não se tira o cobertor de cima nem pra olhar se o bicho papão se foi, nem pra isso._ A voz de Rodrigo-menino soou no meu ouvido direito. A mulher, que era eu, tremeu de frio. Sim chovia, mesmo que ninguém na rua se protegesse.
_Mãe! É um pombo! Olha, um pombo morto... Olha mãe... do lado daquela mulher-de-guarda-chuva-de-bolinha! _ Era a voz de outro menino, dessa vez no ouvido esquerdo, um pouco acima do coração. Aquela mulher-de-guarda-chuva era eu. Só fiz olhar pra baixo, bem devagarzinho, e lá estava ele, morto. Acidente de carro. Conseguia reconhecer alguns órgãos, menos o coração já que não sabia como era o coração dos pombos. Viu o fígado, as tripas, o sangue. Viu as partes internas do pobre esmigalhado e pensou no porquê de tanto asco. As pessoas em volta olhavam curiosas e saíam de perto. Uma menininha, dessas que eu fui um dia, pôs a mãozinha na boca de vômito-espanto. A mulher pensou, eu e ela pensamos, que o pavor de ver um ser-vivo-morto era pela questão da morte ou pelo medo dela e ainda por ver a si, ali migalha do ser. Lutou contra o asco e olhou. Olhou cada detalhe do pombo morto, suas asas. Olhou. Lutou. Lutou assim como luta contra a cebola. Chora, mas chora com dignidade, sem desistir dela. Corta bem cada fatia, cada quadradinho. Gosta de fazer salada. E olhando o pombo pensou no choque, no abalo, no exato momento da queda. A chuva.
Continuou andando pelo cotidiano, a mulher que era normal, ela e seu guarda-chuva a procura do arco-íris. Como este não aparecera, decidiu pelas frutas, uma de cada cor. Comprou bananas, maçãs, um abacaxi somente - porque abacaxi não se compra muito pela acidez-suicídio que carrega consigo – laranjas, das doces – adorava laranjas – e limões. Sim comprara limões. Depois das frutas decidiu por livrar-se do guarda chuva, já que não tinha nem mãos pra carregar, nem asas pra voar, percebendo que realmente não chovia como já desconfiara antes, mas comigo não quis cometar já que somos a mesma pessoa e não tinha sentido ficar falando consigo mesma em meio ao cotidiano.
Assim que chegou em casa, nosso ninho, ninho de todas nós que existimos nela, a mulher separou as frutas que pediam geladeira, afim de que se retardasse o amadurecimento, das frutas que pediam fruteira, lugar que colocamos nossas parcelas imaturas, o que ainda temos de verde, de inocente. Pensou no que fazer para sentir-se útil ao mundo e, como nada viera-lhe a mente, abriu a janela e pôs-se a olhar os pombos entre uma tragada e outra do cigarro que restara apagado junto às cinzas no cinzeiro que tinha o peitoril da janela como seu lugar cativo desde que mudara-se e decidira que a solidão era sua melhor opção já que sua mente era populosa e poluída de assombros e arroubos. Música talvez, não, melhor o silencio. Sentiu o silêncio feliz dentro de si. O silencio feliz dos que têm vida a se viver, mesmo que não asas pra voar.

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