Saíra por aí, no caminho de sempre, se perguntando o que poderia haver de tão magno na parte interna do guarda-roupa. Quanto deslumbre encontrara Albertinho lá dentro! e de lá não mais saíra, exceto quando sentia o cheirinho da torta trazida por aquela moça de maçã.
-Albertinho, o mundo é tão grande, albertinho.
-Coma Albertinho, meu filho, coma.
Saíra então se perguntando como seria a vida lá onde o sol nem nasce e pensara até em compartilhar com ele desse armário de mogno, dessa vida magna. Causava-lhe enjôo quando pensava em partir assim, com repentinamento, pra dentro de sí.
-Ai esse cheiro de madeira!
Estava gorda, pouco atraente, olhos mais pretos que antes, brilho-pitanga.
Estava gorda!
Caminhava com dificuldade tamanha a obesidade mental que crescia a cada esquina do bairro e depois do outro e assim por diante.
- Que peitão, moça!
- Você está me avisando de algo que já sei? - Gritou irritada
Parara de comer há 15 dias numa estranha letargia. Uma parte de si catatonizava-se ao lado do mundo misterioso de mogno e outra vagava por compras no mercado e pagamentos em dia na lotérica do bairro. Acordara do coma em plena farmácia, levava nas mãos sete caixas de vitamina C efervecente e na cabeça, sete pontos de interrogação fervorosos.
- Não tem jeito! Quando o banheiro fica no alto é porque a casa alaga com qualquer chuvinha - dizia a mulher da esquerda, não menos gorda para a mulher da direita que olhava os seus sete pontos efervecentes - Família grande?
- Não, eu somente e meu filho que vive no armário - disse ela antes de arrepender-se.
- Nesse tempo de gripe não é bom bobiar, não é?
Prevenida! Nunca fora prevenida antes. Quase deixou lá as caixas de cor laranja, mas pagou depressa e voltava para casa onde encontaria na porta o aviso de sempre : seja feliz! Quase lá, porém, deparara-se com um homem que recolhia o lixo. Ele cheirava a lavanda e perguntava por Albertinho.
Que inusitado! Não se recordava de tê-lo visto em nenhuma passagem de sua vida. Vida?
- Albetinho continua na mesma.
- Você deveria abrir a porta de mogno para ver se ele ainda está por lá.
- Está sim. Hoje teve torta de maçã. Ele comeu tudo! Você está pálido, leva essa caixa de vitamina C. Nesses tempos de gripe...
- A casa da frente está vazia, abandonada. Ninguém mais mora lá.
- Estranho! Sinto o cheiro das macieiras.
- É melhor abrir a porta.
Abrira! Albertinho chorava, lá na parte de cima do armário. Ele sempre variava entre as laterais e o teto. Albertinho não gostava dessa rotina, por isso chutava.
Sete anos fazia e sempre que abria sentia o mesmo arrepio cortante da curetagem.
- Albertinho, meu filho, não passe tanto tempo aí, que o mundo é grande e você precisa ver quanto mar, quanta terra fertil e quantos homens bons. O mundo é uma maravilha só!
A panela começava a fazer o barulhinho. Era a pressão. Hoje terá feijão, pensava.
Pensava, pensava no presente e se arrastava até o passado como se fosse fácil e não doesse. Lembrou-se daquele menino que conhecera na escola e não vira crescer. Preferira não ver. Ele que sabia que a realidade era muito maior mas continuava num sonho platônico onde tudo era menos tenso, mais cor-de-rosa. Ele quis tanto e tanto levar adiante o que era real, por simples responsabilidade ou medo da solidão forçada. Mas ela recusara suas mãos suadas por questões de devaneio e porque sabia, mais que ninguém, que os sonhos são realmente muito melhores de se viver e que ela, nada mais era e sempre seria, o simples cotidiano.
Pensava, pensava no futuro. Passava por perto e por dentro dessa mente confusa que insistia em carregar nessa boléia de um caminhão pesado e suas sirenes perturbadoras.
Alguém dizia: - Mulher, o cotidiano é genial, é o todo e abrange tudo.
Mas não quisera ouvir nada mais além da palavra mulher. Mulher!
- Quem fala?
- Sou eu! Olha pra mim, nos conhecemos ontem, na fila da lotérica. lembra-se? Bom dia!
- Bom dia!
- Seus olhos olhos ficam mais claros pela manhã. Consegue me ver?
Não conseguia! Olhos e foco eram coisas que já não se encontravam. Olhos claros?
- Sim! Você sabia?
Não sabia. Pediu, mais mulher do que sempre, que o homem se retirasse. Ouvia grunidos no armário e o feijão ainda estava no fogo.
Ele saiu. Na porta, o homem cumprimentou o lixeiro que alí se encontrava estranhamente como no dia anterior, que foi quando chegara junto à mulher.
Mulher!Tentou lembrar o que havia acontecido enquanto esperava que efevervecesse a grande bola de fogo que cabia no copo e chamava-se comprimido efervecente. Mediu a temperatura e lembrou de tudo, inclusive do que gostaria de esquecer.
- Senhora?
- Oi meu filho _ sentia-se particularmente velha nesse dia _ muito trabalho?
- Um pouco! E esse cheiro... Sinto que me impreguina.
- Gostaria de entrar para lavar as mãos?
- Eu?
-Sim, venha logo, preciso ver o feijão.
Mãos já lavadas.
- Seus olhos estão mais claros essa manhã.
- ?
- Conheço aquele homem que daqui saíra ainda pouco.
- Que homem?_ Já não lembrava de nada e percebera que nunca fizera feijão antes e a panela havia inexplicavelmete sumido na pressão.
- Ele é um jogador. É necessário que tenha cuidado com os estranhos.
- Suas mãos já estão lavadas, deixa que o resto por aqui eu mesmo lavo. Agora sai que eu preciso temperar o feijão.
O homem voltava arrependido para o lixo. Perdera a única chance que pudera ter em tantos anos de dizer-lhe que amava as loucas. O que restava era limpar-lhes as ruas.
A mulher já não tão velha deitou; que quando olhava o teto conseguia reorganizar idéias desordenadas. Pensava no armário de si como essa moradia magna, pensava no lixo que cheirava a amor, pensava no jogador que conhecera na lotérica enquanto jogava capitais na vida e pensou com fome no feijão que jaz na pressão. Como tudo pode ser tão confuso aqui por dentro de mim? Como pode ser esquecimento o nome da lembrança? Listou tudo o que deveria dar tempo pra pensar e guardou para depois.
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